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Especial Bicentenário Imigração Alemã: Há 200 anos chegavam os primeiros imigrantes alemães no Vale do Sinos
Há 200 anos, chegavam os primeiros imigrantes alemães no Vale do Sinos
Em 25 de julho de 1824, 39 colonos alemães chegavam à antiga Real Feitoria do Linho-Cânhamo, no local que hoje se situa a cidade de São Leopoldo. Advindos de uma nação fragmentada e destruída pelas guerras, fome e superpopulação, a chegada dos imigrantes ao Brasil marcou o início da colonização alemã no país. Duzentos anos depois, o Jornal Toda Hora relembra em três partes capítulos desta história, marcada por lutas, conquistas, dificuldades e momentos tristes e felizes.
A despedida e a chegada
“E as bandeiras e velas do bergantim Protetor, que está atracando no trapiche de Porto Alegre com imigrantes alemães a bordo.
S. Exa., o Presidente da Província, de chapéu alto e sobrecasaca, os espera no porto, no meio de autoridades.
Da amurada do navio, Willy olha a cidade que os casais açorianos fundaram. Desembarca meio estonteado, de mãos dadas com a mulher: Hänsel e Gretel, coitados, perdidos na floresta.
Num batelão com outras famílias de imigrantes sobem o rio dos Sinos, de águas barrentas e margens baixas, rio sem história, sem castelos, sem ondinas nem Loreleis.
Tornam a pisar terra firme, entram num carro de bois.
‘Este é o lote que te toca, Willy. Agora não passarás mais fome como em tua terra natal.’
Willy olha a mata.
Verflucht!
É preciso derrubar árvores, virar a terra e antes de mais nada fazer uma casa. Mas o alfaiate Willy não sabe construir casas. Senta-se numa pedra e fica olhando as nuvens e achando que Gott wird helfen.
Outras levas de imigrantes chegam. São da Renânia, do Palatinado, de Hesse, da Pomerânia, da Baixa Saxônia e da Vestfália.
O ar da antiga Feitoria do Linho-Cânhamo se enche do som de machados, martelos e vozes estrangeiras. Árvores tombam, picadas se abrem, e escondidos dentro do mato bugres e bugios espiam intrigados aqueles homens louros.
Heirich ficou debaixo dum cedro com o peito esmagado.
Kurt foi mordido por uma cobra.
Um índio furou o olho de Jacob com um frechaço.
Schadet nichts!
Dão à colônia o nome de São Leopoldo.”
O tempo e o vento (parte I). O Continente (Vol. I). Érico Veríssimo
O trecho acima, da obra antológica o “Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, apesar de fazer parte da ficção, retrata de forma sucinta e com fidelidade histórica a chegada dos imigrantes alemães ao Vale do Sinos. Vindos principalmente das regiões do Hunsrück e do Vale do Rio Mosel, terras que em 1824 pertenciam ao Reino da Prússia e atualmente compõem a Alemanha, os imigrantes fugiam da fome, das guerras e da explosão demográfica ocasionada pela rápida revolução industrial.
Conforme o historiador René Gertz, especialista em imigração alemã, em 1824 o Brasil era um estado recém-constituído, e tinha como principal preocupação assegurar as fronteiras mais ao Sul do país, ponto de disputa entre hispânicos e lusos desde a época das colonizações. Assim, se tornava imperativo popular essas áreas. Além disso, Dom Pedro I também buscava soldados para seu Corpo de Estrangeiros. “A fronteira Sul era o problema, pois no Norte nem a Colômbia e nem a Venezuela, por exemplo, tinham qualquer interesse em avançar ou conquistar o território do Brasil. Mas no Sul havia esse interesse dos estados hispânicos em ocupar estes territórios”, explica Gertz.
Gertz também explica que a Imperatriz Leopoldina, austríaca e de origem alemã, também contribuiu para a vinda dos alemães. “A influência alemã não era de todo desconhecida, mesmo no Brasil colônia”, afirma. Além disso, após os anos das guerras napoleônicas, que devastaram a Europa entre 1803 e 1815, os soldados de origem alemã haviam conquistado a fama de serem um dos mais bem treinados da Europa, vindo de encontro a política de reforços das fronteiras do Brasil.
O historiador também aponta o interesse do Governo Imperial em aumentar a produção de alimentos para abastecer Porto Alegre e melhorar a infraestrutura e transporte de gados, cavalos e muares, principais mercadorias do Rio Grande do Sul na época, para o restante do país. “Por isso, se determinou que fossem estabelecidas colônias ao longo deste percurso, inicialmente no território gaúcho, mas a partir de 1829 também em Santa Catarina. A ideia era de se criar uma espécie de corredor destas mercadorias”, destaca.
Com a promessa de uma vida nova no Brasil e sem perspectiva na terra natal, muitos cidadãos de origem alemã aceitaram o desafio de imigrar. Conforme o vereador e historiador Felipe Kuhn Braun, no livro “São Miguel de Dois Irmãos”, após uma viagem que durava quase três meses, os imigrantes chegavam no Rio de Janeiro, onde aguardavam transporte para o Sul do país. “As carretas de bois levaram o primeiro grupo de imigrantes do rio dos Sinos até a Feitoria no dia 25 de julho de 1824, data que marca a entrada da primeira leva de alemães em solo gaúcho”, destaca Braun em sua obra.
Feitoria do Linho-Cânhamo
Os primeiros imigrantes alemães foram instalados na Feitoria do Linho-Cânhamo, antigo empreendimento português na época abandonado e onde hoje se localiza a Casa do Imigrante, em São Leopoldo. Conforme Ângelo Reinheimer, curador da Casa Schmitt e da Fundação Scheffel, devido à falta de apoio do governo, os primeiros anos da colônia foram difíceis. “Os primeiros imigrantes chegam no inverno, sem as mínimas condições. Eles não saem por aí abrindo picadas, construindo casas de enxaimel, pois primeiro precisam se estruturar minimamente”, aponta. Além disso, outro grande perigo para os colonos eram os constantes embates com os índios caingangues, que ocupavam a região desde antes da chegada dos portugueses.
Embora alguns imigrantes tenham de fato recebido terras, Reinheimer aponta que para muitas famílias a promessa não foi cumprida. “Temos alguns estudos [aqui na Fundação] que apontam que apenas 5 ou 6% dos imigrantes receberam terras de graça. O restante acabou comprando. Os meus antepassados, por exemplo, que chegaram em 1852, compraram suas terras”, conta.
A maioria dos imigrantes que se estabeleceram na região pertencia à grande parcela da população que não possuía títulos nem grandes propriedades em território alemão. Conforme Reinheimer, uma vez que a maioria dos imigrantes que se estabeleceram na região não possuía títulos nem grandes propriedades em território alemão, a possibilidade de ter terras no Brasil foi um dos principais motivos para a tenacidade e a resistência dos imigrantes frente a quase total ausência de infraestrutura da região. “De repente tu é dono de terras, tu tens mais terras do que o senhor a quem tu servia na Alemanha, por exemplo. Isso deve ter inflado muito os ânimos. Acho que isso foi a força que motivou essas pessoas a realmente construir o que foi construído”, exemplifica.
Estabelecimento da Colônia de São Leopoldo e a influência alemã na região
Telmo Lauro Müller, um dos principais historiadores da imigração alemã e por anos diretor do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, falecido em 2012, conta em seu livro “1824: Ontem e Depois: o Rio Grande do Sul e a Imigração Alemã”, que o núcleo inicial dos primeiros imigrantes recebeu o nome de “Colônia Alemã de São Leopoldo”, numa homenagem ao santo padroeiro da Imperatriz Leopoldina.
Em poucos anos, apesar das dificuldades, a colônia estendeu-se por todo o Vale do Sinos, com o surgimento de novos assentamentos, como Hamburguer Berg (hoje Hamburgo Velho), Picada Baum (hoje Dois Irmãos), Picada dos Berghan e Picada dos Portugueses (hoje São José do Hortêncio).
A “Colônia Alemã de São Leopoldo” se estendia de Sapucaia do Sul, ao sul, até o Campo dos Bugres, hoje Caxias do Sul, ao norte; de Taquara, ao leste, até Montenegro, a oeste, englobando as terras formadas pelos rios Sinos e Caí.
Conforme Müller, a chegada dos imigrantes alemães marcou o início de diversas mudanças na região e no Rio Grande do Sul, principalmente nos setores econômico e cultural. “Na parte econômica, podemos referir que a produção agrícola em poucos anos floresceu, a ponto de a colônia abastecer a capital, Porto Alegre. Muitos alemães eram artesãos. Com seu trabalho, formaram as bases da industrialização no Rio Grande”, relata em seu livro.
Na cultura, Müller aponta especialmente a criação das escolas comunitárias, uma vez que não havia instituições de ensino na região. “Não encontradas aqui, os colonos as criaram para ensinar as crianças a ler, escrever e fazer contas. Assim surgiram as escolas de comunidade, em alemão Gemeindeschule”.
Além disso, o caráter associativo que marcava o povo alemão, a necessidade de viver em grupo, explica Müller, influenciou na criação de inúmeros clubes e sociedades no Vale, incluindo entidades ainda em atividade como a Sociedade Ginástica de Hamburgo Velho, Sociedade Aliança e Sociedade Atiradores. A religião também teve papel preponderante, com o surgimento de inúmeras comunidades luteranas e católicas nas colônias.
Confira a segunda parte da edição especial do Toda Hora sobre o Bicentenário da Imigração Alemã